segunda-feira, 5 de maio de 2008

Sobre Prokofiev

SERGEI SERGEIEVITCH PROKOFIEV (23.04.1891 – 05.03.1953)

“A virtude cardeal (ou vício, se preferirem) da minha vida tem sido sempre buscar a originalidade de minha própria linguagem musical. Odeio métodos vulgares. Eu não quero vestir a máscara de ninguém. Quero ser eu mesmo”
Sergei Prokofiev

O som roufenho de um ruído surdo interrompeu a marcha fúnebre de Romeu e Julieta que os poucos amigos presentes ao funeral de Prokofiev tentavam executar num velho toca fitas em homenagem ao compositor, falecido 55 minutos depois de Stalin. A funesta coincidência fez com que o pequeno grupo de 40 pessoas não conseguisse sequer adquirir flores. O funeral do ditador havia exigido todas as disponíveis na cidade. Era o último ato da vida de um gênio da música que, como ele mesmo almejava, pouco teve de comum.

Numa atmosfera onde se respirava cultura e o gosto pelas ciências, nasceu a 23 de abril de 1981 Sergei Sergeievitch Prokofiev. A cidade era a pequena Sontsovka, na bacia do Donets, na Ucrânia. Sergei Alexeievitch Prokofiev, moscovita, e Maria Grigorievna Prokofiev, nascida em São Petersburgo (atual Leningrado), eram os pais daquele que, muito por sua influência, viria a tornar-se um dos maiores gênios da música erudita.

Sergei Alexeievitch era um engenheiro agrônomo com excelente formação em ciências exatas e naturais. Quando jovem, por ser um entusiasta do progresso da razão humana, participou de vários protestos estudantis, pagando o preço de suas convicções progressistas, que manteve até o fim de seus dias. Era homem severo e silencioso, tendo dedicado boa parte de seu tempo a organizar escolas para camponeses em Sontsovka.

Maria Grigorievna nasceu numa família da classe média de São Petersburgo e cultivava em torno de si uma atmosfera simples e cordial. Pianista de razoável talento e excelente professora, residia dois meses por ano em São Petersburgo ou Moscou para aprimorar sua técnica.

Os próprios pais se encarregaram da educação do pequeno Sergei, a quem faziam estudar durante seis horas por dia. A mãe era responsável por sua instrução musical, que era ministrada com muita inteligência, com sessões que não ultrapassavam os vinte minutos diários, sempre num clima de extrema liberdade.

Assim, o gosto do menino pela música aflorava rapidamente. Aos cinco anos compôs sua primeira peça, inspirada em histórias sobre a Índia, contadas pela mãe, chamada Galope Hindu. Aos seis anos já havia composto uma valsa, uma marcha e um rondó; aos sete, uma marcha para quatro mãos. Apreciava as canções populares ucranianas e russas que faziam parte de seus folguedos com os outros meninos da aldeia, mas a preferência sempre foi pela música “séria”, ouvida em sua casa.

Quando tinha oito anos, Sergei foi levado a Moscou pelos pais, tendo a oportunidade de assistir ao balé A Bela Adormecida, de Tchaikovsky, e às óperas Príncipe Igor, de Borodin, e Fausto, de Gounod. O entusiasmo foi tal que o menino disse à mãe: “Quero escrever uma ópera!”. Maria Grigorievna, com a doçura que lhe era natural, explicou ao filho as dificuldades de tal empreitada ao tempo que lhe aconselhou a não se ocupar de projetos impossíveis. Sergei respondeu: “Você verá, você verá!”. Ao cabo de três ou quatro meses, uma ópera de três atos e seis quadros, O Gigante, com libreto e música de sua autoria estava pronta. Um ano depois a abertura As Ilhas Desertas aumentava o seu acervo. Apesar de serem composições infantis, já revelavam seu talento inconteste.

Ao gosto pela música, herdado da mãe, juntavam-se a seriedade no trabalho e o gosto pelo pensamento científico e pela ordem, frutos da influência paterna, marcas reveladoras da personalidade de Sergei Prokofiev.

Isto tudo somado, convenceu os pais da necessidade de Sergei prosseguir os estudos fora de casa.

O talentoso compositor, e influente figura na sociedade moscovita, Sergei Taneyev foi o primeiro mestre de Prokofiev. Depois foi substituído por Reinhold Glière, que foi seu professor de composição entre 1902 e 1904. O mestre foi uma das admirações de Prokofiev por toda sua vida. Nesse tempo, Prokofiev, que tinha o hábito de levantar cedo e ir banhar-se no riacho ainda antes do café, estudava com Glière uma hora por dia, para, em seguida, dedicar-se aos estudos de russo e matemática, sob a orientação do pai, para depois receber aulas de francês e alemão de sua mãe. Prokofiev dedicava suas tardes a andar a cavalo e jogar xadrez. Aliás, ficou conhecido, mais tarde, como um dos grandes aficionados do xadrez, tornando se amigo do grande mestre internacional, o cubano José Raul Capablanca, com quem disputou diversas partidas, algumas registradas em livros especializados. Outra de suas distrações favoritas era realizar longos passeios pelo campo, onde ouvia as melodias populares cantadas pelos camponeses ucranianos, o que seguramente fez do compositor um profundo conhecedor da linguagem musical popular, da qual sua obra reúne inúmeros elementos. Nesta época, compôs várias obras, entre as quais uma sinfonia e a ópera A Orgia Durante a Peste, baseada num texto de Aleksandr Púchkin, autor romântico considerado o maior poeta do país e o fundador da literatura russa moderna.

Em 1904 ingressou no Conservatório de São Petersburgo, estudando sob a orientação dos compositores Rimsky-Korsakov, Anatol Lyadov e Alexander Glazunov. O Conservatório era o centro da corrente nacionalista que se opunha ao ocidentalismo e defendia uma arte autenticamente russa. O espírito rebelde de Prokofiev detestava as limitações escolares. Mas foi nessa escola que conheceu e tornou-se amigo do compositor Miaskovsky, seu colega, que o apresentou à música de Claude Debussy, Richard Strauss e Max Reger, incentivando-o em seu trabalho de compositor e apoiando suas inovações. Prokofiev afirmava-se, pouco a pouco, um artista renovador, contrariando a mentalidade dominante no Conservatório. Suas primeiras obras deste período, como o Concerto nº 1 para Piano, de 1911, e a Suíte para Orquestra, de 1914, fizeram com que angariasse fama negativa como músico contra a linha nacionalista russa.

Mas o auge desse período é em 1913, com o Concerto nº 2 para Piano e Orquestra e sua participação no famoso Concurso Rubinstein de Piano, em 1914. O Concerto nº 2 provocou um verdadeiro escândalo, com o parte da platéia esbravejando em altos brados e vaiando. Prokofiev quebra a tradição do Concurso Rubinstein apresentando-se com uma obra de sua autoria, causando polêmica. Mas, apesar dos protestos e da divisão do júri, acaba vencendo o concurso, sendo reconhecido, a partir daí, como pianista de primeira categoria. Além disso, a celeuma causada por suas primeiras obras alçava-lhe à categoria de criador original e que, portanto, precisava ser levado em conta. Nesse mesmo ano, conclui o curso no Conservatório com as melhores classificações. Sua mãe lhe presenteia com uma viagem ao exterior e Londres é a cidade escolhida por Prokofiev. Em Londres assiste à temporada do balé de Serguei Diaghilev e faz com ele e com o compositor Igor Stravinsky seus primeiros contatos.

Prokofiev permanece na Rússia até 1918, aprofundando seus contatos com a vanguarda artística das mais diversas áreas (poesia, pintura e teatro) e experimentando novas formas de composição.

O compositor saúda a Revolução Russa de 1917 como grande evento. Mas torna-se impossível para ele trabalhar exclusivamente como compositor. No ano seguinte, então, faz uma turnê pelo Japão, se apresentando em Tóquio e Yokohama e depois segue para São Francisco e Nova York, onde é recebido como “o pianista bolchevique”, o que não impede seu grande sucesso. Apesar de ter feito mais sucesso como pianista do que como compositor, alguns importantes produtores musicais se interessaram por sua obra e manifestaram o desejo de gravá-la. Para este fim, Prokofiev compõe Contos de uma Velha Avó e Quatro Peças para Piano, Op.32.

Apresenta em Chicago o Concerto para Piano nº 1 e a Suíte Scythian com um estrondoso sucesso. Tanto que a Ópera de Chicago vai a sua procura para apresentar uma de suas óperas. A única completa que o compositor possuía era O Jogador, baseada na obra de Fiodor Dostoievski, mas cuja partitura havia deixado na Rússia. Completa, então, "O Amor das Três Laranjas", baseada num conto de fadas italiano escrito por Giambattista Basile, que lhe serve de libreto. A ópera estreou em 1921. O êxito foi tão grande que a obra foi repetida em várias partes do mundo.

Após um concerto em Nova York, ainda em 1921, Prokofiev conhece a cantora de origem russo-espanhola Lina Llubera, com quem se casaria posteriormente. Ainda em 1921, muda-se para Paris, onde retoma seus contatos com dois grandes promotores de suas obras: Sergei Kussevitsky, que apresentou em primeira audição muitas de suas peças sinfônicas, e Diaghilev, criador dos Balés Russos e para quem o compositor escreveu várias obras. Experimenta um retumbante sucesso junto ao público de vanguarda da capital francesa: a Suíte Scythian, o balé O Bufão e o Concerto nº 3 para Piano e Orquestra são calorosamente recebidas como obras de grande originalidade. A cidade luz é a grande meca das vanguardas artísticas do início do século XX. As qualidades inovadoras da música de Prokofiev são reconhecidas e exaltadas e sua fama se expande por todo mundo. Nesta época, leva sua mãe, cuja saúde estava debilitada, para sua casa em Mantes-La-Jolie. Lina fica com eles um curto período e vai para Milão para estudar ópera.

Prokofiev foi convidado pelo Governo Russo para voltar ao país e trabalhar com a Filarmônica de Leningrado. Declinou do convite e resolveu permanecer na Europa, indo residir em Ettal, no sul da Alemanha, onde permaneceu em 1922 3 1923, dedicando-se apenas às atividades de compositor. Em setembro de 1923 volta a Paris e se casa com Lina. Novamente em Paris, estreita seus contatos com a vanguarda dos compositores franceses, como Francis Poulenc e Arthur Honegger. No ano seguinte nasce o primeiro de seus dois filhos, Sviatoslav e Oleg, e morre Maria Grigorievna, sua mãe.

Seguiram-se várias turnês. Além de União Soviética, Cuba e Canadá, realiza uma pelos Estados Unidos em 1925 e outra pela Itália em 1926, em companhia de Lina.

A turnê de dois meses e meio na União Soviética, em 1927, lotou as salas de concerto. Foi aclamado como o “herói russo cuja música revolucionária conquistou o ocidente”.

Em 1929, o compositor voltou à URSS para nova turnê. Stalin tinha tomado o poder e as diferenças entre a Europa e a América e o comunismo soviético ficaram muito mais acentuadas. Prokofiev passou a ser visto como burguês e suas composições passaram a ser rejeitadas. O Balé Bolshoi se recusou a montar sua obra Le Pas d’Acier diante da pressão da Associação Russa dos Músicos Proletários.

Três anos depois, o compositor faz sua terceira turnê pela União Soviética. A Associação Russa dos Músicos Proletários havia sido dissolvida e ele volta a ser acolhido pelo público com amor e adoração, reconhecido como um dos maiores compositores russos vivos. Durante essa turnê o governo soviético lhe oferece alguns incentivos, como um apartamento em Moscou e um carro novo, para que volte a residir na Rússia definitivamente. Prokofiev, que sempre conservou sua identidade russa, dessa vez aceita e, depois do longo período passado no estrangeiro experimentando sucesso espetacular, retorna ao país natal para residir em Moscou.

No período que se estende de 1933 e os anos marcados pela Segunda Guerra Mundial, participa intensamente na vida teatral e cinematográfica da URSS.

É nesses anos que Prokofiev compõe o balé Romeu e Julieta e o conto sinfônico para crianças Pedro e o Lobo, obra obrigatória nos concertos didáticos por todo mundo até os nossos dias.

Em 1936, em toda a União Soviética, a arte passou a ser instrumento de propagação da ideologia stalinista em detrimento da estética, em obediência aos cânones do realismo socialista. Novamente caem sobre Prokofiev os rótulos de ocidentalizado, formalista e excessivamente contemporâneo. Cessa o tratamento diferenciado com que foi recebido anteriormente e o compositor é outra vez alvo do desprezo do governo.

Na tentativa de externar seu apoio à ideologia soviética, ao menos publicamente, Prokofiev compõe a Cantata para o 20º Aniversário da Revolução de Outubro e a Cantata Zdravitsa (um tributo a Stalin). Dois anos depois, compõe a ópera Semyon Kotko, baseada na ocupação da Ucrânia pelos alemães, em que os invasores eram retratados como vilões. Mais tarde, fato que o compositor não poderia imaginar, a Alemanha se tornaria aliada da União Soviética. Stalin manda executar Vsevolod Meyerhol, produtor da ópera, e a obra foi excluída do repertório oficial. Prokofiev é impedido oficialmente de sair da Rússia.

Em meio à Segunda Guerra Mundial, em 1941, o compositor se divorcia de Lina e liga-se à poetisa Mira Mendelssohn, que havia conhecido em 1938. Por conta do conflito universal, seus sentimentos patrióticos são avivados e ele inicia a composição da ópera Guerra e Paz, baseada no romance de Leon Tolstoi. A primeira versão é completada no ano seguinte, mas a definitiva só seria concluída dez anos depois.

Nessa mesma época, Prokofiev transfere-se para os confins do Turquestão oriental e se fixa em Alma-Ata, onde se haviam refugiado os cineastas soviéticos, liderados por Sergei Einsenstein. É aí que inicia a composição da música para o filme Ivan, o Terrível, concluída dois anos depois, quando o compositor vai para a Casa dos Compositores, em Ivanovo, onde trabalha em colaboração com Miaskovsky, Shostakovitch e Kabalevesky, além de outros. A colaboração de Prokofiev na obra de um dos mais importantes cineastas de todos os tempos, Sergei Eisenstein, é decisiva. A música composta para Alexandre Nevsky e Ivan, o Terrível, emprestam um acabamento genial aos filmes. Sobre o compositor, diz Einsestein: “As consoantes com as quais Prokofiev assina seu nome (PRKFV) poderiam ser lidas como um símbolo da rígida conseqüência de todo seu talento. Todo o instável, transitório, acidental ou caprichoso foi excluído de sua obra, assim como excluiu as vogais de seu nome. (...) Nada efêmero, nada acidental. Tudo é distinto, exato, perfeito. Por isso, Prokofiev não é apenas um dos maiores compositores de nosso tempo, mas também o mais assombroso compositor de música para cinema.”

Após um ano de um ritmo de trabalho intenso, em 1945 Prokofiev é vítima de hipertensão arterial, a partir do que sua saúde começa a declinar. Contudo, não para de trabalhar e compõe diversas partitura dentre as quais a ópera Um Homem Autêntico. A ópera, juntamente com obras de Shostakovitch, Khatchaturian e Miaskovsky, provoca uma condenação do Comitê Central do Partido Comunista da URSS por “desvios formalistas, tendências musicais antidemocráticas, estranhas ao povo soviético e seu gosto artístico”. Prokofiev obriga-se a escrever uma carta ao Congresso da União dos Compositores Soviéticos, reconhecendo a justeza da condenação.

A partir de 1946 passa a viver em Moscou, em sua vila no subúrbio de Nicolino, sempre compondo intensamente.

O casamento entre soviéticos e estrangeiros fica proibido pelo Soviete Supremo, em 1947, tendo a medida inclusive efeitos retroativos. Com isso o casamento de Prokofiev com Lina é anulado. Um ano depois ele se casa com a poetisa Mira Mendelssohn, que trabalha com ele em várias peças, incluindo as óperas Duenna e Guerra e Paz. Logo em seguida, Linasua ex-esposa, é mandada para um campo de concentração na Sibéria, onde permanece por oito anos, até ser liberada e voltar a Moscou e sair da Rússia definitivamente.

Andrei Zhdanov era o encarregado de impor a implacável censura cultural estabelecida por Stalin. Zhdanov denuncia Prokofiev como cosmopolita e formalista, fazendo com que este, desmoralizado, empreenda algumas tentativas de defesa, mas acabando por pedir desculpas e compondo uma série de trabalhos patrióticos para apaziguar o censor.

Sergei Prokofiev trabalha em ritmo frenético até seus últimos dias.

Ao morrer subitamente de hemorragia cerebral, em 5 de março de 1953, deixa várias obras inconclusas.

Por ter falecido no mesmo dia, 55 minutos depois de Stalin, sua morte só é divulgada pela imprensa alguns dias depois. A única divulgação de que se tem notícia no dia é a da “Voz da América”. Por três dias o povo encheu as ruas e a Praça Vermelha, que era próxima ao local onde residia Prokofiev, para participar das solenidades fúnebres em homenagem ao ditador, impossibilitando o transporte de seu corpo para a União dos Compositores Soviéticos. Era o último empecilho criado pelo ditador ao grande compositor que não pode receber não só as homenagens que lhe eram devidas, mas até as mais simples, como flores para o enterro, posto que haviam sido todas destinadas ao enterro de Stalin.

“É dever do compositor, para servir seus companheiros, embelezar a vida humana e apontar o caminho para um futuro radiante. Este é o código imutável do artista do meu ponto de vista.”

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